Srta. Mirren,

Agora minhas suspeitas confirmam-se ainda mais, afinal não creio de se tratar de um golpe de sorte que ainda continuaste em Londres, e ainda verificara a casa de minha tia. Mas vou deixar este assunto aos meus companheiros, pois não passo de um filósofo amador.
Posso ter me equivocado quanto ao vosso título, mas creio que a senhorita tenha também se equivocado, quanto ao meu título, que pode ser colocado como ‘Sir’. Minha atribuição do título de senhorita ao teu nome foram meramente deduções, das quais acredito que tenho alguma experiência. Sua senhorita não mencionara em duas cartas sobre um suposto marido. Também sou conhecedor de caligrafias, e a sua parece ser de uma pessoa jovem. Acredito que se estivesse casada, não estaria trabalhando, estou certo? E também por não ter confirmado se tinha ou não um marido, tomo a liberdade em suspeitar ainda mais um pouco. Mas não tome estas minhas palavras como um insulto a sua pessoa, Srta. Mirren, são apenas tolas especulações de minha parte.
Agora quem ficara curioso, sou eu. Se a senhorita tivera uma mãe que era cantora e pianista, e um pai marceneiro, porque decidira seguir a vida como uma enfermeira? Tu não tens a objetividade de uma enfermeira, que apenas sabe ser rápida em informar-nos de nosso quadro clínico, curar-nos quando possível e nada mais.
O lisonjeio, senhorita, é de todo meu. Afinal, tuas palavras reconfortam-me ainda mais do que o desabafo, que confesso deixar-me embaraçado.
Perguntas se todos os meus amigos são filósofos? Não, tenho poucos amigos filósofos que realmente considero. Os outros, que não são poucos, estão nas mais vastas variedades que se possa encontrar de amigos. Tenho amigos pintores, escultores, escritores, tenho colegas no exército de nossa Rainha dos quais acompanhei até a Turquia e Índia, um velho e grande amigo de infância tornara-se padre em Westiminster, um companheiro de viagens que é meu guia a mais de três anos, do qual tenho imenso apreço. Conheço artistas de rua, trabalhando nas grandes cidades da china. Tenho uma infinidade de amigos, todos eles, aprendi algo relativo a sua profissão, conforme me é pedido por nossa Generosa e Grandiosa Rainha.
Confesso estar muito interessado no trabalho de seu pai, pode até ser que eu venha a conhecê-lo, pois sou também organizo espécie de catálogo de artistas existentes em nossa Inglaterra, a fins de estudos. E realmente acho uma lástima ele ter que se aposentar devido ao infortúnio, que também despertara minha curiosidade, porque achas que o acidente fora demasiado estranho? Gostaria de poder ajudar, mas acho que desse modo não seria capaz, apesar de eu poder checar com minha Rainha, pois ele ainda pode lecionar a sua arte, aqui em Londres, que achas? Seria o mínimo que eu poderia fazer, agora que vejo que abandonara seu Pai para exercer uma profissão, que, infelizmente é desgastante.
Sinto em informar, senhorita, que não me acho com o tempo que poderia falar de minha tia, pois esta tarefa encheria cartas e mais cartas a respeito desta pessoa incrível. Também preciso me apressar nesta carta, pois viajo a poucas horas para a Irlanda.
Mais uma vez foi uma honra ter lido mais uma carta de sua senhorita, uma pessoa que consegue ser mais interessante nas cartas que outros pessoalmente.
E para garantir que leia esta carta, mando duas cópias para os dois endereços que conheço.

Atenciosamente, John
E Deus Salve a Rainha.

Sr. Marback,

Perdoe-me a demora. Mas, como havia informado, estou de passagem em Londres para resolver algumas pendências. Não estou hospedada em casa de tua tia, o que não me permitiu receber tua carta anteriormente. Apenas tenho ido até lá para averiguar algumas coisas.
Acontece que nestas últimas semanas eu não pude comparecer à residência de nossa querida Lílian. Estive em Spitalfiels, visitando meu bom e velho pai. Ele não pode trabalhar desde que amputou a mão direita em um acidente que, diga-se de passagem, até hoje creio ser demasiado estranho. Viúvo, só tem a mim. E como não pude fazer muitas visitas desde que estive ao lado de Lílian, aproveitei a estadia para fazê-lo.
Achei interessante chamar-me por senhorita, mesmo sem saberes se era ou não casada. Algum motivo em especial para tê-lo feito? E, antes que possas sequer pensar que senti-me ofendida, digo que só comentei por ter achado intrigante. Somente por isso.
Sinto-me lisonjeada pelos elogios, sinceramente. E também acredito que não foi somente coincidência o nosso encontro. Afinal, de uma maneira ou de outra, partilhamos uma mesma perda, uma mesma dor. E talvez minhas palavras possam conforta-te, tanto quanto as tuas a mim. Sábios são teus amigos filósofos. Creio que todos eles, não?
Sobre o meu envolvimento com a arte, devo dizer que sou uma amante incansável. Cresci rodeada por livros. Apesar de vir de uma família não muito abastada, incentivos não me faltaram.
Minha mãe me ensinou a tocar piano; que linda voz ela tinha! E meu pai era um artista quando se tratava de madeira. A Inglaterra perdeu um dos seus maiores marceneiros, acredite!
Eternamente apaixonada pela Literatura, não consigo dormir sem ter um livro à cabeceira. Na verdade, só costumo adormecer após ler algumas páginas, escutando o crepitar da vela, que torna o papel ainda mais amarelado. Não sei por que amo tanto essa sensação.
Sinto-me grata pela generosidade. Creio que a única coisa que posso te pedir é que fale-me um pouco da Lílian radiante que ela deve ter sido. Felizmente e infelizmente só a acompanhei em seus últimos momentos, depois de muito debilitada. E quando finalmente se foi, senti como se tivesse perdido muito mais do que supus.
Tens todo o direito de recusar o meu pedido. Mas, em todo o caso, és minha única possibilidade de descobrir o porquê deste sentimento.
De qualquer modo, mais uma vez, obrigada.

Até breve,
Katherine.

Cartas jogadas aos céus

Srta. Mirren,

É um prazer imenso conhecer a senhorita, mesmo nessa hora, sei reconhecer alguma pessoa de valor quando possuo contato com esta.
Recebo esta carta com um grande pesar que, nem mesmo o melhor escritor poderia descrever. Afinal eu era seu sobrinho, e decerto era considerada como uma mãe para este que lhe fala.
Creio que fui uma imensa sorte que tenhas ido a antiga casa, aqui, em Londres. Pois senão, imagino eu que o falecimento de minha adorável tia iria passar mais alguns meses despercebido pela minha pessoa, pois tornaria as minhas andanças. Mas, citando trechos de alguns companheiros filósofos dos quais tive o prazer de trocar conhecimentos, não há coincidências em nossa vida.
Fico feliz que minha tia tenha passado os últimos dias dela acompanhada, e por uma senhorita que, mesmo tendo voltado seu conhecimento para as áreas da saúde, parece ser bastante instruída na arte, pois acredito, e assim espero, que minha tia não iria comentar somente sobre a minha pessoa.
Fico confortado, de certo modo, que minhas antigas cartas, tão demasiadamente demoradas, tranqüilizaram minha querida, mesmo não podendo estar lá em pessoa, sinto que fiz uma parte de meu dever, mesmo que não compense nada minha presença.
Sinto estar importunando a senhorita com os meus pesares, mas falar com a última pessoa que esteve com minha tia é importante, e reconfortador.
E também gostaria de lhe dizer que se precisa de algo, que não se acanhe, e peça, afinal você cuidou de minha tia, e também parece ter se afeiçoado muito a ela.

Com meus sinceros pesares,
John

Londres, Outubro de 1886

Sr. Marback,

É com muito pesar que venho, através desta, informar-te de tamanha desventura. Primeiramente, devo apresentar-me. Sou Katherine Mirren, enfermeira e companheira de tua amável tia, Lílian Marback.
Deves estar se perguntando por que enfermeira, creio eu. Pois bem, tua tia sofreu forte infecção no final do ano passado. Tudo indicava que não passaria disso, uma infecção renal. Mas outros problemas foram aparecendo. Perdeu o movimento das pernas, e, com pouco tempo, também a visão. Foi quando comecei a trabalhar para ela.
Como seu estado era grave e irreversível, optou por morar em Moure, um pequeno condado de Hampshire. E foi lá que passou os seus últimos dias.
Ouvi muito a teu respeito. Sempre se desmanchava em elogios pelo sobrinho que criara como a um filho. Falou-me sobre teus inúmeros talentos artísticos e da imensa saudade que deixava a tua presença.
Ela veio a falecer no mês passado. Pediu-me que viesse a Londres para resolver algumas pendências que confiou somente a minha pessoa. E foi nesta ocasião que, por acaso ou destino, encontrei a tua epístola.
Reconheci, de súbito, tua caligrafia, pois li tuas cartas inúmeras vezes em seu leito. Tenhas a certeza de que elas a confortaram, e, de certo modo, tornaram sua morte menos dolorosa.
Realmente é uma lástima não estar entre nós. Tão alegre quanto parecia ter sido, teria ficado radiante com o convite.
Sinto muito não poder me delongar. Sei que gostarias de ler mais algumas palavras sobre tua querida tia, mas sua partida foi para mim também muito dolorosa. E ainda tenho muitos afazeres.
Meus sentimentos. E que Deus a Tenha!

Atenciosamente,
Katherine.